O OLHO DE HERTZOG
João Paulo Borges Coelho
A cerimónia de entrega do Prémio LeYa teve lugar no passado dia 4, de Março na residência do embaixador de Portugal em Maputo.
A cerimónia contou ainda com a presença do presidente do Júri do Prémio LeYa, Manuel Alegre e do Administrador do Grupo LeYa, Isaías Gomes Teixeira.
Segundo se lê na acta do júri, presidido por Manuel Alegre, descreve-se esta obra inedita como sendo um romance que restitui-nos o contexto histórico dos combates das tropas alemãs contra as tropas portuguesas e inglesas na I Guerra Mundial, na fronteira entre o ex-Tanganica e Moçambique, o confronto entre africânderes e ingleses, a emigração moçambicana para a África do Sul, a reacção dos mineiros brancos, as primeiras greves dos trabalhadores negros e a emergência do nacionalismo moçambicano, nomeadamente através da imprensa e dos editoriais do Jornalista João Albasini. O júri considerou ainda esta obra como sendo um romance de grande intensidade, em que se conjugam a complexidade das personagens, a densidade da trama narrativa e a busca de O Olho de Hertzog, que é, de certo modo, uma metáfora da demanda do destino individual e colectivo e do nunca desvendado mistério do ser.
Discurso de Aceitação do Prémio Leya 2009
Desde tempos recuados que o continente africano se tornou famoso como fonte de matérias-primas. Por elas se matou e se morreu. No princípio foi o ouro da bíblica Ofir e do Mwenemutapa, depois o marfim, o corno de rinoceronte capaz de operar maravilhas no Oriente, e até a energia humana por meio do hediondo comércio de escravos e dos trabalhos forçados. África forneceu pois, ainda que de forma involuntária e nem sempre com proveito, o combustível das grandes revoluções que fizeram o mundo avançar para aquilo que é hoje. À medida que este avançava, novas matérias-primas nela foram sendo descobertas, assim como se apuraram novas maneiras de as pesquisar: o cacau e a borracha, o petróleo, os diamantes, e até o coltan, o chamado “ouro azul” do sul do Congo, sem o qual os notebooks e os telefones celulares não poderiam funcionar.
Todavia, há uma matéria-prima que desde sempre foi passando despercebida às pesquisas, apesar das esforçadas expedições, da sofisticação das análises e dos testes, dos radares e sondas, enfim, dos satélites.
A matéria-prima a que me refiro, em estado bruto parece uma pedra vulgar em nada distinta das outras pedras. É uma pedra feita das histórias das pessoas deste país Moçambique, e desta região: dos seus desejos e sonhos, das suas memórias e disputas, dos lugares que habitam e do que fazem no seu dia-a-dia – enfim, da vida que têm. Talvez (e porque é esta a ordem do mundo enquanto a não conseguirmos mudar), uma pedra mais despojada, mas ainda assim capaz de uma beleza e força singulares.
A par de me desbravar os meus próprios interiores e de me confrontar com a minha própria língua, entendo a escrita literária como o ofício de polir essa pedra. Todavia, dado que para polir cada pedra há primeiro que achá-la, é um ofício que depende também, em grande medida, de mestres garimpeiros. No meu caso tem havido muitos, e quero deixar aqui o nome de três.
O segundo nome é o de Suzé Mantia, que no início da década de 1980, nas aldeias de Mavago, Chilolo e Nkalapa, me ensinou o significado do som de cada tambor e como se montava a armadilha dos pássaros; e me indicou a específica rocha, junto ao rio, onde Samora e Josina se sentaram a descansar, a meio da difícil marcha para sul. Em palavras cantantes de uma minúcia real e ao mesmo tempo imaginária, descreveu-me os acontecimentos todos que couberam dentro desse dia. Lenhador fortíssimo, capaz de derrubar uma árvore grossa com três machadadas, era também o marceneiro exímio que fabricava uma porta com pormenores de espantosa subtileza. Homem de um riso límpido como nunca vi igual, e que infelizmente a malária levou.
O terceiro nome é o de Joaquina Mboa, camponesa e sacerdotisa da aldeia de Bawa, que em meados da década de 1990 me contou a saga do Kanyemba, velha de mais de cem anos, com uma precisão que os documentos de arquivo só vieram comprovar – facto que ainda hoje não deixou de me intrigar.
Tal como são inúmeros os mestres ourives que, a partir das pedras que lhes chegaram ou chegam às mãos se têm dedicado a minucioso polimento, com isso ajudando a entender os meandros do ofício de que falo: o Craveirinha, a Noémia, o Knopfli, o Luís Bernardo, o Mia, a Paulina, o Ungulani, o Patraquim, o White, o Suleiman. E, em particular, o jornalista e escritor João Albasini, que me levou pela mão a espreitar segredos antigos desta cidade, alguns dos quais este livro, indiscreto, revela.
Tantos são os mestres ourives que é pois também difícil enumerar. Estes e outros por esse mundo fora, que ao longo dos tempos e nos mais diversos lugares nos têm oferecido à leitura as suas jóias particulares. Porque é de leitura que falo, dado que é através dela que podemos chegar à miríade de brilhos e reflexos que de cada jóia emana.
João Paulo Borges Coelho
Maputo, 4 de Março de 2010
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