terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

CONTOS E NOVELAS DE MIA COUTO

 Fotografia de Alfredo Cunha






  OS CONTOS                                                                              

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VOZES ANOITECIDAS 
O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no nada essa ilusão de plenitude que faz  parar a vida e anoitecer as vozes.

Mia Couto, in texto de abertura da obra.


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«(...) Ele ficou deitado a respirar. A vida dele estava toda ali, repartida nas costelas que subiam e desciam. Neste deserto solitário, a morte um simples deslizar, um recolher de asas. Não um rasgão violento como nos lugares onde a vida brilha.
- Mulher
- disse ele com voz desaparecida. - Não lhe posso deixar assim.
- Estás a pensar o quê?
- Não posso deixar aquela campa sem proveito. Tenho que matar-te.
- É verdade, marido. Você teve tanto trabalho para fazer aquele buraco. É uma pena ficar assim.
- Sim, hei-de matar você; hoje não, falta-me o corpo.

Ela ajudou-o a erguer-se e serviu-lhe uma chávena de chá.
- Bebe, homem. Bebe para ficar bom, amanhã precisas da força.
O velho adormeceu, a mulher sentou-se à porta. Na sombra do seu descanso viu o sol vazar, lento rei das luzes. Pensou no dia e riu-se dos contrários: ela, cujo nascimento faltara nas datas, tinha já o seu fim marcado.». 

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Excerto do conto A Fogueira.

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CADA HOMEM É UMA RAÇA 

(...)Tem dúvida? Então vou apresentar testemunha. Vocês vão ver, esperem lá.
E saía, deixando os clientes na expectativa. O Afonso era calmado pelos restantes. (....)
O barbeiro não tinha ido longe. Afastara-se apenas uns tantos passos para conferenciar com um velho vendedor de folhas de tabaco. Regressavam os dois, o Firipe e o velho:
- Está aqui o velho Jaimão.
E virando-se para o vendedor, Firipe ordenava:
-Fala lá você, ó Jaimão.
O velho tossia toda a roquidão antes de confirmar.
- Sim. Na realmente, vi o homem da foto. Foi cortado o cabelo dele aqui. Sou custumunha.
E choviam perguntas dos clientes:
-Mas você chegou a ouvir esse estrangeiro? Falava qual língua?
- Shingrese.
-E pagou com qual dinheiro?
- Com kóbiri.
- Mas qual, escudo?
- Não. Era dinheiro de fora.
O barbeiro satisfeitava-se, peito em proa. De vez em quando, Jaimão ultrapassava o combinado e arriscava suas iniciativas:
- Depois, esse homem foi no bazaro comprar coisas.
- Que coisas?
-Sabola, raranja, sabau. Comprou fódia, também.
- Agora é que te apanhei: um homem desses não compra fódia. É história isso. Um tipo dessa categoria fuma tabaco de filtro. Jaimão, você só está a contar mentira, canganhiça, só mais nada.
O Jaimão admirava-se com súbita teima. Olhava, receoso, o barbeiro e ainda tentava um último argumento:
- Uááá, não é mentira. Até me lembro: foi um sábadu.

Excerto do conto Sidney Poitier na barbearia de Firipe Beruberu.
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ESTÓRIAS ABENSONHADAS 

— Cumprimenta também você!
Olhei a margem e não vi ninguém. Mas obedeci ao avô, acenando sem convicções. Então, deu-se o espantável: subitamente, deixámos de ser puxados para o fundo. O remoinho que nos abismava se desfez em imediata calmaria. Voltámos as barco e respirámos os alívios gerais. Em silêncio, dividimos o trabalho de regresso. Ao amarrar o barco, o velho me pediu:
—Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém, ouviu?
Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim: nós temos os olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam de outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos.
—Me entende?
Menti que sim. Na tarde seguinte o avô me levou uma vez mais ao lago. Chegados à beira do poente ele ficou a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual demora. O avô se inquietava, erguido na proa do barco, palma da mão apurando as visitas. Do outro lado, havia menos que ninguém. Desta vez, também o avô não via mais que a enevoada solidão dos pântanos.
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CONTOS DO NASCER DA TERRA 

Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O Pai meteu-se num barco e remou para longe.
Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa.

Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamento. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário de todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:

Pai!

Então, se abriu uma fenda funda, ferida de nascença da própria tera. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi asssim. Essa foi uma vez.

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NA BERMA DE NENHUMA ESTRADA E OUTROS CONTOS


Mia Couto seleccionou, de entre publicação dispersa por jornais e revistas ao longo de anos bem recentes, estes trinta e oito textos que agrupou sob o título Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos. Cada novo encontro com a sua escrita significa uma viagem a que não apetece pôr termo. A intensidade das personagens, a multiplicidade de registos em que as várias tramas ocorrem, o universo do fantástico e do sobrenatural coexistindo em perfeita sintonia com o dia-a-dia da tradição, da cultura e da vivência experienciadas, a capacidade de efabulação, a oralidade que emana da palavra escrita transformando-a em puro som, são portos a que acostamos e que nunca desvendamos por completo. Façamos escala em «Fosforescências», «O último ponto cardeal», «O fazedor de luzes», «Os amores de Alminha», «Os gatos voadores»; tomemos o rumo de «As cartas», «O escrevido», «Ave e nave»; voguemos ao sabor de «A multiplicação dos filhos», «As lágrimas de Diamantina», «O amante do comandante»; deixemos que as ondas nos levem até «Rosita»; e mergulhemos profundamente nas águas, agitadas às vezes, tranquilas outras, do imaginário inesgotável do autor de Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos.

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O GATO E O ESCURO 

O Gato e o Escuro revela-nos uma faceta inédita da arte de Mia Couto, já que a escrita para crianças não tem sido o seu território.
Explorar este livro, em que a criatividade literária e linguística do texto e as ilustrações vibrantes de Danuta Wojciechowska mutuamente se iluminam, será um prazer para as crianças. E para os adultos também. 


Para ver mais sobre este livro, consulte o artigo sobre a literatura infantil, neste blog.
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O FIO DAS MISSANGAS 

Uma vez mais Mia Couto regressa ao conto, género literário que parece ser o da sua maior realização. Estórias breves mas contendo, cada uma delas, as infinitas vidas que se condensam em cada ser humano. Uma vez mais, a linguagem é trabalhada como se fosse delicada filigrana, confirmando o que o autor disse de si mesmo: «conto estórias por via da poesia».

São vinte e nove contos unidos como missangas em redor de um fio, que é a escrita encantada de um consagrado fabricador de ilusões.



  AS NOVELAS                                                                             ____________________________________________________________

 MAR ME QUER   

Dona vizinha desconfia de desventura dos outros. Só lhe interessa as antiguidades de que fiz parte. E eu, para subterfugir, aldrabo umas lembranças, desenrasco uns pensamentos.
Até, um dia, lhe perguntei:
Por que só minhas lembranças, as pessoais?
A vizinha não respondeu. Antes, retrucou assim:
Bom, se lhe custa, então, me conte uns sonhos...
Mas eu nem lembro nunca dos sonhos que me visitam enquanto durmo! É que temos horários diferentes: eu e o sonho. E aviso:
— Hão-de ser sonhos falsificados...
— Não importa.
(...)— Não faz mal, Zeca Perpétuo. Hoje, eu até podia pagar para alguém me contar os sonhos.
Riu-se, em esboço. Mas era uma só tristeza molhada. Depois, deixei minha vizinha em seu assento e fui regressando, em passo lento, a minha casa. Luarmina se entranhou na sua pequena mania como se descosturasse um pano nenhum:
— Mar me quer, bem me quer...
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A CHUVA PASMADA

Como ele sempre dissera:
o rio e o coração, o que os une?
O rio nunca está feito, como não
está o coração. Ambos são sempre
nascentes, sempre nascendo.
Ou como eu hoje escrevo:
milagre é o rio não findar mais.
Milagre é o coração começar sempre
no peito de outra vida.

 Para ver mais sobre este livro, consulte artigo sobre literatura infantil, neste blog.




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